Julio C Gambina,
Há 41 anos, um golpe militar
instaurou na Argentina a ditadura mais sangrenta da sua história. Mas os
interesses que esses militares defenderam através da mais bárbara repressão e
de um violentíssimo terrorismo de Estado tiveram e têm continuidade no quadro
constitucional posterior a 1983. São os interesses do grande capital, contra os
interesses e direitos e contra a ação organizada dos trabalhadores e do povo.
A 41 anos do golpe genocida de 24
de Março de 1976 há que fazer memoria e recuperar os objetivos então propostos
pelas classes dominantes para considerar quanto alcançaram e como o aprofundam
na atualidade.
Com o terror de Estado exerceu-se
a “necessária” violência para reestruturar a economia, o estado e a sociedade,
e por isso a cultura do medo, mediante a repressão explícita, para obter uma
férrea disciplina social. Por isso não deve surpreender a argumentação
ideológica no presente contra a mobilização social em defesa dos direitos dos
de baixo. É a cultura repressora da dominação que defende o direito a circular
juntamente com os de propriedade, contra os dos trabalhadores, seus salários e
condições de emprego.
Sim, há matizes em 41 anos, não é
o mesmo a ditadura e os governos constitucionais, não necessariamente
“democráticos”; mas existem algumas regularidades institucionais que atravessam
todo o período.
A mais importante é a ofensiva do
capital sobre o trabalho, e a flexibilização e precariedade laboral constituem
uma constante em todo o período. A irregularidade atinge um terço do emprego, é
menor que o máximo de 2001/02, mas reflete a voracidade da impunidade
empresarial que deteriora direitos e condições de vida dos trabalhadores.
Em consequência da ofensiva
capitalista mudou a relação quotidiana entre trabalhadores e seus empregadores,
com a clara intencionalidade de restringir a capacidade de protesto e
organização sindical, que não é maior em resultado do bloqueamento de uma
cultura social e sindical na Argentina, com tradição histórica em diferentes
identidades político ideológicas anti capitalistas.
Os instrumentos da ofensiva
capitalista foram variados, não só para transformar a relação laboral, mas
também o tipo e função do Estado, daí as privatizações e o incentivo à
iniciativa privada. Uma lógica que é hoje reiterada com a pretensão de
normalizar a educação privada, enquanto na escola pública se “cai” por não
haver alternativa para os mais empobrecidos.
O quotidiano organiza-se com a
mercantilização capitalista na saúde e a educação, na habitação, na cultura, na
segurança ou na justiça; mas não deve esquecer-se que esse propósito formulado
em tempos ditatoriais se materializou com governos constitucionais e persiste.
A dívida pública é um mecanismo
na origem do que se potenciou em tempos e turnos constitucionais, com uma não
alterada “lei de entidades financeiras” em vigor desde 1977 cujo objetivo de
concentrar a banca se concretizou ainda mais do que o esperado, juntamente com
a sua estrangeirização.
Não pode pensar-se no modelo
produtivo atual, readequado nestas décadas, sem ter em conta o propósito
explicitado pelo Plano de Martínez de Hoz em Abril de 1976, cujo eixo guia foi
impulsionado sob a orientação de Cavallo com presidentes peronistas e radicais.
Os objetivos da ditadura não se
materializaram apenas sob condição de golpe de Estado, mas também com
legislação aprovada pelo Parlamento, sejam as leis da impunidade ou a lei
antiterrorista, antecedente de qualquer protocolo de repressão contemporâneo.
É este trajeto que permite
explicar os 33% de pobreza e a concentração em poucos multimilionários do
petróleo, da construção ou das finanças. Refiro-me a Alejandro Bulgheroni,
Eduardo Eurnekian, Alberto Roemmers, Gregorio Pérez Companc, Jorge Horacio
Brito, Eduardo Costantini, ou Marcos Galperin. A Argentina replica o que se
passa no mundo, onde 8 fortunas individuais detêm a mesma riqueza que 50% da
população mundial.
É de interesse recuperar a
memória, sim, mas também considerar as continuidades essenciais em tempos
constitucionais para tornar a Argentina funcional para a ordem capitalista
mundial, agora – no quadro da crise - desafiada ao seu próprio reordenamento.
Este manifesta-se nas críticas à globalização capitalista a partir das suas
próprias classes dominantes, caso do BREXIT ou do triunfo de Trump, ou da
expansão visível das direitas mundiais que se oferecem para reformar em seu
benefício o capitalismo atual.
São reformas para relançar a
lógica do lucro, da acumulação e da dominação. Por isso há que pensar em termos
alternativos, o que supõe a crítica aos processos de mudança que se processaram
ou processam na nossa região e discutir a necessária transição da ordem atual
para formas sociais de organização da produção e da vida quotidiana colocando
em primeiro lugar os direitos humanos e os da natureza.
A gigantesca manifestação de
recuperação do acontecimento que o genocídio representou pode servir para
construir subjetividade e propostas programáticas para uma crítica do passado e
do presente, juntamente com debate sobre o próximo futuro de emancipação
social.
Buenos Aires, 23 de Março de 2017
fonte: O Diario,info
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